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Lázaro Mabunda

Estudar não é a primeira prioridade

Não se trata de uma história, mas de factos que revelam uma realidade nua e crua, que contraria todo o esforço dos governos dos países ricos, de Moçambique e da Organização das Nações Unidas. Moçambique vive um dilema: os casamentos prematuros – de crianças com crianças e de crianças com adultos. A nossa reportagem esteve no distrito de Magude, localizado a 130 km da capital do país, e conta o que encontrou no terreno.

Lembrança Nhambe tem 15 anos de idade. Nasceu e cresceu no posto administrativo de Panjane, localizado a cerca de 40 km da sede distrital de Magude, a pouco mais de 100 km da capital do país, Maputo. Há cerca de oito anos foi encaminhada à escola pelos pais. Quando foi matriculada na Escola Primária Completa do Primeiro Grau de Panjane, o sonho dela, e talvez também dos pais, não era que fosse doutora, enfermeira ou professora ou que se formasse em determinada área, era, contudo, que fizesse tempo na escola enquanto procura atingir idade para ser casada. A sua primeira prioridade era mesmo crescer e casar-se.

Durante cerca de oito anos, Lembrança não ia à escola com o objectivo de alcançar um título académico, queria, pois, era saber ler, escrever e ter o mínimo de domínio na comunicação em língua portuguesa. No mínimo perceber algo em língua portuguesa. Alcançado o objectivo, até porque a sua idade já a permitia que escolhesse ou que lhe fosse escolhida um parceiro, ela decidiu, no ano passado, abandonar a escola para se juntar ao velho Cubai, de pouco mais de 60 anos de idade, residente no povoado de Boi, no posto administrativo de Sabié, distrito de Moamba. Em troca, a família de Lembrança deverá receber, do seu genro Cubai, 20 cabeças de gado bovino.

O caso, que ficou conhecido por “Lembrança”, provocou revolta nos professores, que julgam que ela era criança demais para, não só se casar, como também para se juntar a um senhor de mais de 60 anos de idade.

“É uma situação preocupante. Temos vindo a trabalhar com as sociedades para ver se podemos estancar esta situação. E tentamos trabalhar com os líderes comunitários para percebermos o que existe por detrás disso e o que podemos fazer para resolver a situação”, conta com preocupação Armando Matlava, director de EPC de Panjane, e antigo professor de Lembrança.

Matlava revela que tentaram resolver o “caso Lembrança (em Janeiro deste ano)”, mas sem sucesso.

“(Lembrança) é uma miúda de 15 anos que está em casa de um senhor de idade superior a 60 anos”, esclarece Matlava, que duvida que ela tenha sido conquistada e aceite o seu noivo sem intervenção dos seus pais: “Não acredito que tenha sido o homem (Cubai) a conquistar a miúda, pode ter havido negócio com os pais, porque eles dão importância ao gado. É que aqui o sistema de lobolo (anelamento ou casamento tradicional) é por gado. Para eles é um negócio”.

O “caso Lembrança” foi levado ao conhecimento do chefe do posto administrativo de Panjane, em Janeiro, “no sentido de se submeter à polícia, porque este caso não passa de uma violação sexual de menores”. No entanto, nem com isso, Lembrança demove-se da sua decisão: o amor da sua vida foi encontrado. Chama-se velho Cubai. Ao que tudo indica, para ela a idade não conta, como dizia o cantor brasileiro, Roberto Carlos, no seu álbum “Mulher de 40”, o que conta é, de facto, o amor que tem com o seu noivo.

A nossa reportagem tentou ouvir os noivos, mas sem sucesso. A família de Lembrança nega que tenha vendido a jovem e justifica que ela “escolheu o seu noivo”. Para Matlava, isso é inconcebível.

Relativamente ao mesmo caso, Jorge Filimone, director distrital dos Serviços de Educação, Juventude e Tecnologia de Magude, lamenta a situação e diz que estes casos “são comuns no distrito”.

No distrito de Magude, sobretudo nos postos administrativos, ter uma menina representa riqueza proveniente do lobolo. “Os pais que têm meninas já estão a ver o curral enriquecido pelo gado”, desabafa Matlava, para quem “basta crescer, a tendência é de procurar formas de ela ser casada para, em troca, os pais obterem o gado”.

Estranho, nisto tudo, é que os encarregados (pais) não assumem que forçam as suas educandas (filhas) a ir para o lar. “Algumas crianças casam com pessoas com idades superiores a 40 anos”, lamenta o director da EPC de Panjane, adiantando que os estudos que têm vindo a fazer mostram que se “trata de um negócio dos pais”.

“O mais importante, para eles, é a miúda crescer e ir para o lar, não dão importância à educação. Todas as miúdas que desistem têm como causa casamentos prematuros. Desistem porque casam cedo.”

Faltou ao exame para ser anelada

Carlota, assim identificada, é uma outra jovem que protagonizou num passado recente uma cena digna de filmes de Hollywood. De idade compreendida entre 12 e 15 anos, residente no posto administrativo de Motaze, também no distrito de Magude, e aluna da EPC local, Carlota deve estar a atribuir a culpa ao Ministério da Educação. É que o Ministério da Educação marcara exames escolares anuais para o dia em que estava previsto o seu anelamento. E porque estava perante duas escolhas prioritárias, tinha que sacrificar uma a favor da outra que julgasse a prioritária das prioridades. Nisso, a educação saiu a perder a favor do casamento, ainda que fosse prematuro.

“É um problema cultural. Em todo o distrito de Magude, o problema é quase idêntico. A tradição aqui é a miúda crescer e ir para o lar. Se vai à escola é aquela coisa de fazer tempo para crescer. As miúdas casam no intervalo dos 12 aos 15 anos. Basta fazer 4ª e 5ª classes é suficiente. São poucas raparigas que fazem o segundo grau. Basta crescerem um pouco vão para o lar”, repisa Matlava.

A mesma ideia é comungada por Jorge Filimone, director distrital dos Serviços de Educação, Juventude e Tecnologia de Magude: “este é um problema que afecta o sector de Educação no distrito de Magude, sobretudo nos postos administrativos. É muito frequente as crianças estudarem dos seus 6 até aos 11 anos. A partir dos 12 anos, elas são aneladas por senhores que nós considerámo-los avós e pais dessas mesmas crianças. Mas achamos que isto é tradição da própria zona. Isto acontece muito nos postos administrativos de Panjane, Motaze e Mulelemane”.

Filimone lembra com mágoa o dia em que Carlota faltou ao exame porque tinha que ser anelada. “Nós tentamos persuadir a família da jovem no sentido de a deixar ir fazer exames e que o anelamento podia acontecer à tarde. O nosso esforço foi em vão. Quer a família, assim como ela, não aceitaram. Assim, não fez exames e deixou a escola”.

“Vender” a neta antes de morrer

Filimone conta que para estancar a situação, a instituição que dirige está a trabalhar com a Fundação Lurdes Mutola “para mostrarmos aos pais que as miúdas precisam da escola para se formar. Temos dito aos pais e encarregados de educação que o primeiro marido que devem escolher para uma miúda é o emprego”.

“Para os pais que já viram a vantagem de ensinar as crianças, através da Fundação Lurdes Mutola, há maior preocupação, mas ainda persistem alguns pais, que nem são, na verdade, pais, são avós que estão a cuidar das suas netas cujos pais morreram de doenças. Os avós pensam que podem morrer antes de usufruir do gado resultante da venda das meninas. Consequentemente, vendem-nas em troca de 15 cabeças de gado, de tal anelamento que estipulam”, conta Filimone, realçando que “Temos dito a eles que se apostarem na educação dessas crianças, elas podem valer mais do que as 15 cabeças que recebem desses senhores.

Disse também que há casos em que as raparigas vão ao lar, mas devido ao tratamento a que são sujeitas acabam abandonando, fugindo para Maputo. “São vários casos”, diz Filimone.

Uma das medidas para erradicar o problema é apoiar os estudos das raparigas até à formação profissional. Concluída a sua formação, ela regressa à sua terra para trabalhar e mostrar às outras a importância da escola.

“Em alguns postos administrativos, mandamos professoras para dirigir as escolas, para as famílias verem a vantagem de deixar as crianças de sexo feminino estudar.”

Rapazes desistem para preparar o seu noivado

Não são só as raparigas que desistem da escola naqueles postos administrativos. Também os rapazes o fazem. Aliás, as estatísticas mostram que, nos últimos dois anos, houve mais desistências de rapazes do que de raparigas. Os motivos e as prioridades são, obviamente, diferentes, conforme explica o director distrital da Educação: “Os rapazes preferem deixar de estudar para apascentar o gado, porque quando vão apascentar o gado, no fim de cada ano, recebem uma cabeça em compensação. E o pai diz: ‘meu filho, vá apascentar o gado e dentro de quatro anos terás 5 ou 6 cabeças, o que vai dar para anelar (lobolar) a sua mulher’. As crianças preferem abandonar a escola para apascentar o gado e receber uma cabeça por ano. Este é um outro contraste que encontramos nos rapazes”.

Não só: “Alguns pais que têm três ou quatro filhos obrigam-nos a ter um calendário para responder à sua preocupação. Temos de fazer um calendário diferenciado para esses filhos. Se essas crianças estiverem na mesma classe, temos que fazer alternância. Ou seja, um dia vem um assistir às aulas e noutro o outro. Assim, quem tiver ido à escola nesse dia, tem por obrigação explicar ao que não foi. No entanto, acontece que há um que não consegue explicar devidamente ao outro, o que faz com que alguns prefiram desistir. Temos graves problemas nisso”, frisa, lamentando que os pais entreguem a crianças, dos seus 8, 9, 10 ou 12 anos, os cuidados duma manada de mais de 100 cabeças.

A título de exemplo, em 2009, no Ensino Primário do Primeiro Grau (EP1) – tem havido poucas desistências porque ainda são menores de idade, cerca de 10 anos – desistiram, de um total de 14 352 em todo o distrito, 886 alunos, dos quais 387 raparigas e os restantes 501 rapazes; em 2010, de um universo de 13 751, desistiram 914 alunos. Desses 550 rapazes e 364 raparigas.

No EP2 a situação é “bem pior”.

Factores que ditam a fraca qualidade de educação

A má qualidade de educação, a falta de incentivo e a deficiente formação de professores no país, já reconhecida publicamente por todos, contribuem para estas situações. Aliás, o actual primeiro-ministro, Aires Ali, então ministro da Educação, reconheceu, no ano passado, o que se vinha negando: a educação bateu no fundo, em termos de qualidade.

“O Ministério da Educação e Cultura (MEC) constatou, no terreno, a existência de problemas de qualidade de ensino primário, situação que é mais grave nas classes iniciais”, disse Quitéria Mabote, assessora do ministro da Educação e Cultura”, em 2008. Este problema é mais visível nas primeiras e segundas classes, onde existem alunos sem conhecimento de leitura e escrita.

A fonte disse que a questão se verifica um pouco por todo o país, mesmo nos maiores centros urbanos. Contudo, a situação não pode ser generalizada, porque há casos isolados de alunos com resultados positivos tanto no campo como nas cidades.

São apontados como outros factores que estão por detrás desta situação o desempenho do professor no exercício das suas funções. A equipa de técnicos do MEC constatou haver professores que não planificam as suas aulas. Esta situação pode concorrer também para que haja muitas desistências nas escolas, devido, sobretudo, à falta de atractividade.

No ano passado, o novo ministro da Educação, Zeferino Martins, veio também reconhecer publicamente que há fraca qualidade de ensino. O governante disse que, no quadro do Plano Estratégico aprovado há mais de 10 anos, o Ministério da Educação vai concentrar, nos próximos cinco anos, as suas atenções sobre três principais pilares, nomeadamente, o acesso das crianças à educação básica, a melhoria da qualidade de ensino e o desenvolvimento da capacidade institucional e de recursos humanos.

A outra prioridade vai para a revitalização do ensino técnico-profissional, no quadro do Programa Integrado da Reforma da Educação Profissional.

“Nós reconhecemos que o desenvolvimento de algumas competências de saber ler e escrever alcançam-se no final de dois anos lectivos. É por isso que se considerou que a primeira e a segunda classes constituem o primeiro ciclo de aprendizagem”, disse Martins.

Os cortes orçamentais efectuados este ano, devido à crise financeira internacional, irão agravar a situação, além de deitar abaixo todo o esforço das organizações internacionais, como a UNESCO, e do governo na luta pela busca de qualidade no ensino nacional.